Fragmento

(…) Lutava contra tais sentimentos e o tempo circundava criando um vazio em seus pequenos e inofensivos hábitos. Abriam caminho para finitude e o cotidiano tornara-se mais suportável. Era uma suportabiliade ilusória, pois sabia que os hábitos eram uma prisão. Fez seu café, sim, resolveu-se pelo cigarro e olha em volta, analisando todos os objetos da casa enquanto fazia anotações mentais do que precisaria ser feito. Ajustar o quadro na parede, trocar o forro da mesa, desembolar o fio da fonte do computador, limpar a gaveta onde guardava as receitas (quase todas da sua mãe, um bem de amor – um dia faria muitos daqueles pratos).

Não querer perdão por aquilo que lhe tornava conservadora.

Mas ainda assim a meta era ser libertária. Uma acidez, sensação de sufocamento, budistas falam de veneno mental. O café não ficou como queria, foi aquela pequena porção a mais de pó. Tudo bem, assim ficou ótimo também. Hoje já nem sabia o que era aquilo que sentira. A lembrança sempre vinha acompanhada de um aperto no peito, procura impulsos ajudantes. Começar em algum lugar, fora da superfície. Que aflitivo! Tinha a perfeita noção de que nada, absolutamente nada de anormal aconteceria se nem tudo fosse cumprido. Se tratava de algo inofensivo. Imaginava que o caminho da cura fosse o enfrentamento dessa ilusão. Experimentava, testava o cotidiano. Já chegara a passar todos os dias pelo mesmo relógio que marcava exatamente a mesma hora 7:46. Chegou a conseguir isso por muitos dias consecutivos. Quase se acostumara com a sensação de vertigem e falta de ar.

Não segura a torrente de lágrimas. Reivindica seu direito a chorar e a se sentir o tão vítima quanto quisesse. Parentes por parte do infinito, dos crimes. Não gostava desse terreno, o da vítima, mas era uma emergência. De tempos em tempos precisava se refugiar ali, mesmo que por alguns minutos. Logo se recuperava, e buscava seu auto-controle na base de respirações programadas. Conhecia bem o caminho da ida e da saída desse estado. Sob todos esses domínios da finitude humana. Se culpa pelos pensamentos de uma suposta libertação, pensamentos frutos de insônia e tormento. Isso ainda acontece, e, entre lágrimas vê o que acontece à sua volta a todo momento percebendo uma interligação imediata com aquilo que vive internamente.

Será que é normal isso? Sempre ensimesmar? (…)

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Lee Friedlander, Untitled, California, 2008

 

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