1.

É um encantamento estar longe de onde há o perigo e da última coisa que você se lembra (uma briga). Lá vigora também aquilo que salva à autocompreensão de nossa própria condição como seres humanos assolados pela incerteza (olhos vendados). Arrisca transformar-se em pesadelo autodestrutivo – a ambiguidade é preferível à clareza e à simplicidade. O ônibus sacolejando sobre um talco vermelho, assemelhando a paisagem à filtros vintage que encontramos por aí – alimentando tipos específicos de ilusão, uma memória que pertence a todos. Não restou sonho de liberdade possível, técnica que equaciona urgência com pressa, por si mesmo emergencial. A mudança resulta de uma instrumentalização da necessidade de uma postura mais racional que não se desloque da ação.

É lenta. Nada parecida com o ativismo frenético e o falatório vazio a fim de consolidar e estender sua ideia original. Ideais ainda imaturos. Começa a notar que coisas insólitas estão acontecendo com ela e, pior, está fazendo coisas estranhas e irreconhecíveis. O movimento cessa, a poeira invade as janelas e tudo fica coberto com uma fina camada que seca a garganta e fere os lábios. Abre a bolsa e entrega uma moeda dobrada ao meio – enfrentar um livre fluxo do pensamento.

É claro que você terá de criar o vilão – lembrou.

Colocando a felicidade dependendo de um fator externo, observava todo o sincronismo oculto naquilo que acontecia ao seu redor. Não resistia relacionar o número de janelas do lado esquerdo do ônibus com o número que estava na placa de sinalização do posto, com o casaco vermelho rubi que viu em uma senhora. Gostava de pensar que tudo à sua volta estava de alguma forma interligado e que um fio frágil (que ainda não se deteve em definir muito bem o que era) costurava o cotidiano. O que traz algum conforto. Por todas as vidas que formam-se nessa rede de pensamento, que envolve fatalidade. Minha alma está em estado avançado de decomposição – cansaço. Arrumou suas coisas na bolsa, pensando em como ter menos e ser mais simples. Deve ser leve precisar de menos objetos, e, principalmente, menos objetos na bolsa. Qualquer felicidade excessivamente buscada fora de si é absolutamente temporária, lembra daquela frase que acabara de ler. Ter muitas coisas devia ter um motivo. Só que não conseguia descobrir se isso era uma forma de romper o isolamento, de se sentir um pouco menos solitária.  Ela sentiu um impulso maior no que diz aos seus assuntos pessoais. Como essa bolsa pesa. Preciso de bolsas menores, preciso precisar menos. O acúmulo é cansativo e eu já estou cheia de andar capengando.

Desceu no local indicado. A primeira coisa que chamou a atenção foram as cores, a composição e a relação das formas. O lugar parecia destruído, era um local de obras (estão por toda a cidade, afinal), onde se misturavam concreto, pó e muitos restos. Fica ali por uns instantes para apreciar, aliás, para decifrar. Não entende porque ambientes em ruínas chamam tanto a sua atenção e logo imagina que muitas peças de arte contemporânea estão ali, prontas. Os vergalhões retorcidos pelos tratores e marretas faziam um desenho no espaço – a aniquilação de qualquer resquício de romantismo. O trabalho seria só o de deslocá-las para uma galeria. Ri. Ri porque sabe que não é esse o seu caminho. O das galerias de arte. Sentia uma genuína disposição de compreender e de buscar um novo significado aos próprios erros que não envolvessem culpa. A ideia do encontro era de um enfrentamento das emoções e pensamentos negativos. Mais leve, mais leve. Esse era o seu desejo íntimo.        

Tinha direito ao bem-estar – enxergar os erros como aprendizado. Puxa, como isso era difícil. Sentimentos de compaixão e compreensão conseguira ter em relação aos outros, principalmente àqueles que não conhecia. Já aos próximos e a si mesma não tinha ainda esta habilidade. A aparência era perturbadora. A melhor maneira de ter certeza acabou gerando ainda mais expectativa, não mencionara o ocorrido por muito tempo e assim tudo parecia seguir seu rumo normalmente. A frase pichada no muro por trás dos escombros interpela, exige resposta: ‘qual violência você pratica?’ Paro subitamente e o mundo gira. Perco os pensamentos e minhas pernas dão uma volta sobre os próprios calcanhares e sigo para o mesmo ponto que cheguei. A enxurrada de pensamentos paralisa e tira a coragem. Amanhã estarei melhor, hoje não tenho condições de seguir meu plano. Sigo o caminho vermelho, pouso os pés na poeira, sento numa beirada de meio fio esperando o veículo que me levará de volta. Sobre a violência, não conseguira encarar.

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3 comentários sobre “1.1 (para se aquecer)

      1. […] Então, meu coração também pode crescer.
        Entre o amor e o fogo,
        entre a vida e o fogo,
        meu coração cresce dez metros e explode.
        – Ó vida futura! Nós te criaremos.

        Drummond – Mundo Grande

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