Chega em casa exausta, existencialmente exausta. Via que ninguém estaria a seu lado e o que se passava por dentro escorria pelos poros. Até há bem pouco tempo a perspectiva de um castigo moderado, satisfazia. Sobre a natureza da autoria dos, por assim dizer, crimes. Hiato entre o potencial de um gesto. Talvez sinta-se impaciente e acredite que é aí que as possibilidades aumentam.
Parecia ser uma prioridade do tempo, das solidões, do retiro, da exclusão, essa luta diária contra tudo aquilo que esmaga, asfixia. A volta pra casa era sempre um alívio e um grande contentamento. Ali, nos dois últimos anos, conseguira imprimir sua marca, o que a fazia sentir-se totalmente à vontade. Tornara seu lar. Deseja um futuro mais próspero e relaciona o onde mora com sua própria vida. Menos coisas equivaleria a menos preocupações e mais espaço, o que na prática era um caminho gradual, já que isso se relacionava diretamente com um estado mais primitivo da sua mente. Isso também resolveria depois, hoje ela conquistou a liberdade de percorrer a paciência (reduzir aquilo que não é tão necessário quanto imaginava).
Subia os degraus, tirava os sapatos ali mesmo no final da escada, não tinha descanso em relação aos obstáculos existentes que minavam sua força de vontade. O esforço era legítimo. Agora faria um café, um cigarrinho talvez, e queria desistir da tensão no corpo. A frase não saía do seu pensamento, já que de um tempo pra cá assumira sua condição de violentada. Aceita que dói menos – nessa lógica que acreditava seguir os rumos da sua vida. Agora estava decidida a ter o encontro, que fosse… que fosse…
Era já a terceira vez que se detinha na frente dos escombros, perdida tanto nos detalhes e nas sincronizações máximas, vendo sentidos ocultos que geravam uma tensão corporal extrema. Sua garganta doía, o maxilar, a posição da língua na boca, as articulações. Movimentar ficava difícil e era a hora de respirar e relaxar os músculos. Ideias exageradas sobre organização, simetria, perfeição já tinham ficado para trás. Costumava ser tão leve, encarava a desordem com tranquilidade. Isso mudou como fruto disso. Agora ainda não. O que falta no meu corpo é somente resíduo da experiência desse mundo, e algumas palavras têm um peso enorme quando pronunciadas – peso de carne viva. É o equilíbrio da evidência e do lirismo. Costumava passar horas em agonia, paralisada em alguma esquina. Isso tinha ficado para trás; pelo menos em parte. Assumir o desejo do controle e aceitar que não o tem. Tão banal. Tão sutil mas capaz de precipitar taquicardias. Tranquilizar-se em relação aos perigos acabou por aprender com meditação e técnicas de respiração. Sentia-se forte o suficiente para controlar-se. Sabia que as contradições eram importantes e nunca estiveram tão em cores vivas como nos últimos dois anos. As contradições eram fúcsia, sublinhadas em amarelo limão berrante. Inescapável o incômodo.
Anda pela casa com pressa, cumprindo pequenos ritos, hábitos; a chave no lugar, a bolsa na cadeira, lavar as mãos, entrar na cozinha e tomar água mesmo sem sede. Nada demais até aqui. Sente suas articulações doerem tanto, percebe seus ombros de repente tensos e encolhidos, olha as juntas inchadas das mãos. Não consegue alcançar o motivo daquela rigidez, respira diafragmamente, e consegue aliviar. Algumas más escolhas a tiraram da sua vida, aquela que seria se não tivesse sido tão cruel consigo mesma. Mas isso, embora fosse doloroso, era desimportante, conseguira perceber que não valia a pena essa roda viva de pensamento aflitivos. Sentir que fazia parte de um grupo de oprimidos era uma forma de socialização, solitária encontrara seu nicho. Se as ideologias tornavam as pessoas classificáveis, o crime de forma inconsciente fazia isso também. Ser vítima era doloroso, mas de alguma forma, era um conforto.
Lutava contra tais sentimentos, e o tempo circundava criando um vazio e seus pequenos e inofensivos hábitos abriam caminho para finitude, e o cotidiano tornara mais suportável. Era uma suportabiliade ilusória, pois sabia que os hábitos eram uma prisão. Fez seu café, sim, resolveu-se pelo cigarro, e olha em volta, analisando todos os objetos da casa enquanto fazia anotações mentais do que precisaria ser feito. Ajustar o quadro na parede, trocar o forro da mesa, desembolar o fio da fonte do computador, limpar a gaveta onde guardava as receitas (quase todas da sua mãe, um bem-querer. Um dia faria muitos daqueles pratos). Não aceitar perdão por aquilo que lhe tornava conservadora. Mas ainda assim a meta era ser libertária. Uma acidez, sensação de sufocamento, budistas falam de veneno mental. O café não ficou como queria, foi aquela pequena porção a mais de pó. Tudo bem, assim ficou ótimo também. Hoje já nem sabia o que era aquilo que sentira. A lembrança sempre vinha acompanhada de um aperto no peito, procura impulsos ajudantes. Começar em algum lugar, fora da superfície. Que aflitivo! Tinha a perfeita noção de que nada, absolutamente nada de anormal aconteceria se nem tudo fosse cumprido. Tratava-se de algo inofensivo. Imaginava que o caminho da cura fosse o enfrentamento dessa ilusão. Experimentava, testava o cotidiano. Já esteve a passar todos os dias pelo mesmo relógio que marcava exatamente a mesma hora 7:46. Chegou a conseguir isso por muitos dias consecutivos.
Quase se acostumara com a sensação de vertigem e falta de ar. Não segura a torrente de lágrimas. Reivindica seu direito a chorar e a se sentir o tão vítima quanto quisesse. Parentes por parte do infinito, dos crimes. Não gostava desse terreno (o da vítima) mas era uma emergência. De tempos em tempos precisava se refugiar ali, mesmo que por alguns minutos. Logo se recuperava e buscava seu autocontrole na base de respirações programadas. Conhecia bem o caminho da ida e da saída desse estado. Sob todos esses domínios da finitude humana. Se culpa pelos pensamentos de uma suposta libertação, pensamentos frutos de insônia e tormento. Isso ainda acontece e, entre lágrimas vê à sua volta e a todo momento percebendo uma interligação imediata com aquilo que vive internamente. Será que é normal isso? Sempre ensimesmar?

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