Cada
pedra com a qual ela encheu os bolsos do casaco antes de entrar no rio era uma ferramenta de memória. Precisava disso: peso e massa e volume e concreto – lembrança que a gente pega.
Acredito que toda autoridade tem que se posicionar, que toda hierarquia é ilegítima até que se prove o contrário. Certa manhã, bem céu azul, enquanto eu lia as cartas de um poeta morto no quintal, pressinto um fragmento daquela mutualidade atômica, quem sabe. Minha visão periférica – aquela glória de instinto – me puxa para uma imagem linda: uma pequena folha vermelha cintilante girando no ar. Ela permanece suspensa lá, orbitando em um centro invisível por uma força invisível. O resultado, ao contrário do que se pudesse supor, é uma mistura de aborrecimento, medo e escapismo. Posso ver como tais causalidades imperceptíveis poderiam levar a nossa mente à superstição, poderiam levar-nos a buscar explicações em magia e poderes divinos. Mas então me aproximo e percebo uma fina teia de aranha brilhando no ar acima da folha, conspirando com a gravidade nesse movimento giratório, indiferente ao significado construído e à nossa fé.
Onde a gente termina e o resto do mundo começa, para onde vai o nosso afeto quando o destino não está mais lá e o amor, a ternura e a cumplicidade e a alegria e as risadas e o estar solto, conexões invisíveis e idéias e jeitos e cachaça? Tome uma dose e dê uma volta de bicicleta por aí. E nunca mais se esqueça de que tudo é liquefeito. Mantendo ilusões de permanência, congruência e linearidade não se vai muito longe, bem se vê. A vida se desdobra entre alguns eus estáticos e narrativas sensuais. A história não é o que aconteceu, mas o que sobrevive aos naufrágios do julgamento e do a(o)caso.
Há infinitamente muitos tipos de vidas bonitas.