Concha

Você afunda e abaixa a cabeça na roupa de cama… Você especula sobre o luxo de se esgotar toda a existência ali, um pouco. Como que em uma concha fofa, o conforto de se sentir bem, sem precisar mexer para nada, dura pouco, mas é bom. E o tempo todo consciente do calor delicioso, de como você sente você e você sente e novamente, novamente sente.  Esse pensamento acolhe e irá reunir uma multidão de outros a lançar sua tez durante a hora do seu despertar.

Quando minha cabeça está oprimida e um calor seco e febril irrita a pele e o sangue, de modo que cada toque e qualquer som pareça com um ferrão de escorpião agudo, imploro para que me levem à pedra primeira (ou qualquer outra) do sono. Lá deixa-me acordar das ondas e da fúria da brisa do alto. Essa brisa é cura e aleitamento, esfria a minha testa, acalma meu cérebro. Posso abrir os olhos e todo o resto parece estar quebrado, apenas uma pitada de queda no ar e a umidade toda levanta-se. E é como se alguém tivesse colocado um grande manto pesado em meus ombros. Não posso mais olhar onde a luz é mais brilhante, na fresta da cortina, que os olhos estão areia e a boca seca.

Você se encontra, por algumas horas, bem acordada nesse reino de ilusões e contempla as paisagens maravilhosas. Existe um entardecer na solidão das noites em claro e em tudo o que disser então. Todas as mulheres em mim estão cansadas. Apenas esperando o sol, apenas como seu cigarro queimado. Quanto à solidão – você nunca poderia saber o quanto do amor e da companhia diminuíram sob esse efeito.

[…]

Se você pudesse escolher uma hora de vigília fora da noite inteira, seria isso.

 

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Sabe do que fala.

No quintal, um dos cães começou a latir no portão. Ela serviu-se de conhaque em seu copo e balançou a garrafa. Levantou-se da mesa e foi até o armário e apanhou uma outra. Magro, rígido. Um rosto escavado, olhos fundos. Modos sarcásticos. Ora cansado, ora ardente. Sempre generalizadamente ansioso. Era assim que o via. Exatamente assim. No momento em que você tende a se sentir mais segura e serena, é a hora que os cães ladram pra que não se esqueça que a calmaria é ilusão. Hoje em dia ninguém é capaz de compartilhar uma sensação com o outro. A noite, alguns cigarros e algumas bebidas funcionam bem pra clarear os pensamentos. Eu não sei como você chamaria isso, mas eu tenho certeza de que não chamaria de amor. Eu conseguia ouvir meu coração batendo. Eu conseguia ouvir o coração de todo mundo. Eu conseguia ouvir o ruído humano que os cães faziam, sentados lá em outros quintais. Nada de mim se movendo, nem mesmo quando a cozinha ficou escura. Suspirou, mas sem nenhuma vontade de acender as luzes. Amanheceu ali, na mesa da cozinha, um pouco bêbada e um bocado lúcida. Sentir o que se sente depois de uma noite assim. (Na verdade, era uma pessoa que não sabe o suficiente para prever (ou entender) seus pensamentos e ações). Então foi feito tudo o que podia ser feito e, nesse começo de manhã, estava dando pequenas risadas anunciando pequenas alegrias.

 

Conhaque

 

 

 

 

Neurônios-espelho

Uma noite de novembro na década de noventa esteve sozinha, e se estivesse tendo um dia ruim, não olhariam em sua direção. Talvez sempre se pode ouvir Você vai encontrar instantaneamente como viver. A jovem família tem prioridade, e isso faz com que se sinta um pouco pior. Os dois sentados em um quarto de hotel, diante de uma declaração absurda que era aquela – preferia as que vinham com força de mudança, quiçá equilíbrio. Pensar com prudência e estilo.

Pois que uma pessoa de tantas histórias, que acontecem em lugares um pouco indeterminados, revela possibilidades bastante limitadas e ainda assim não consideradas. Muitos anos atrás gostaria de saber em que medida a vontade verbal pode ser traduzida. Palavra-ação. Objetos imóveis como pedras, conchas, as forças de areia movediça-escuras, um palácio, água pura, colunas imponentes, uma pirâmide, pinturas nas paredes que nomeamos quando perambulam no nosso sono, rebuliçam a consciência.

Porquê o verso livre, prevendo uma saúde emocional forte, é mais difícil de escrever do que a poesia calibrada, cadente. Se não há algum tipo de movimentação interna que justifique a rigidez, ele não poderá ser feito. Levanta-se lentamente, segue em direção à janela, abre as cortinas e a noite que poderia ser a mais estrelada de todas para coroar a emoção, e é apenas mais uma noite. Como tantas, sem dono. Desejava algo que torne cognoscível o caminho de algo fora do tempo. É uma forma de hipnotismo, auto imposto. Isto é apenas parcialmente o seu próprio fazer e as preferências são, se não houver escolha, de vivê-las a fundo e perceber que ama (no matter or what).

As ondas já não vêm como antes, e a produção do medo estancou. “Sinto que todos nós temos esses ‘neurónios-espelho’ em nosso cérebro que nos fazem tomar um pouco de humor das pessoas ao nosso redor.” Arde de vontade por um pouco de humor, por um pouco de persistência, alegria. Uma boa contrapartida se conseguir dormir …

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Eric Marrian

 

Insone

Era uma construção simples onde vivia e dormia em lençóis pintados para se assemelhar a tijolos. Sentia-se por vezes enterrada na noite. Não permitia contato fácil com o mundo – foi dormir vestida e com uma letargia paralisante. Fez de tudo para ficar acordada, chegou a montar guarda e tentou trancar as portas para que o sono não pudesse entrar. Submersa ali na escuridão completa durante a noite não tinha a menor ideia das indispensáveis formalidades que pertencem à vida diária. E de que não era a única. Uma lei do silêncio se estabeleceu em um caminho cercado de árvores e mesmo depois dos vereditos e mesmo com as histórias se multiplicando, o dormir e o acordar representavam perigo.

Com os que brincavam, mesmo de maneira intrincada, ela era idêntica. Os sinais (uma ilha branca de olhos azuis) de ordem dizendo que iria se tivesse a oportunidade! Em muitas formas só pode ser conhecida por matinais gestos que fizeram parte do seu repertório. (Queria saber como eram os gestos de sua vida). Do lado de fora das indiferentes reações ao abandono, das janelas dos quartos às noites que mais parecem painéis solares, os pensamentos iluminam.  E o que aconteceu mesmo, do mais simples ao depois das casas coloridas, foram os turnos cozinhando para os enlutados.

Os grandes campos férteis podiam ter sido interrompidos, mas parecia perdida em pensamentos e se certificou de que o registro de gás estava realmente fechado. Como uma outra tentativa velada de encorajar o abandono (me disseram que foi melhor deixar tudo em silêncio). Ter perdoado por vontade própria teria lhe feito conseguir escapar de fraturas internas.

Se via velha e branca adormecida.

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Olivier Culmann, Spectateurs, 2005