Mantimentos

Queria acompanhar aquela pessoa, levaria cantis e sacolas com frutas. Esperaria o sono para anular mais algumas horas de espera. A noite era fria e acobertar-se era o que se devia pensar.

O rosto pálido e ainda tenso transparecia em sua expressão o fim de uma luta que teria ocorrido em sua vida faz tempo. Surgia daí hipóteses, vontades, metas. Talvez você se comprometa a comer alimentos orgânicos cultivados localmente, ou talvez você comece uma nova prática do ‘como você pode encontrar e manter seu centro’ – disse.  Não posso deixar de pensar imediatamente em várias experiências que se poderia ter a partir daí. Mas já que está fazendo sua própria coisa, você está em sua própria aventura, você está em sua própria missão. É quando eu realmente sinto que começo a entrar em algumas situações boas, agradáveis ​​e não-perigosas, assim quando em determinado momento da noite se levanta e começa a perceber movimentos difusos ao seu redor. Se tinha esperança naquela tarde era a de que finalmente o caminho se abriria. Então o que impediria? Vou ter que me sentar na cadeira de um analista para essa resposta. 

Eu sei ele teve uma abordagem muito criativa para a vida. Ele não era convencional e isso me ajudou muito bem. Tento não me surpreender com os personagens loucos com quem se a gente costuma se envolver nesta vida. Seu lema era: ofereça os poucos alimentos que dispõe. Ajuda mútua. Não importa se você bagunça; pelo menos você está tentando algo diferente. Alguma desistência que fosse feita no escuro incomodaria naquelas circunstâncias. Precisamos de todos, insistia.

A noite não foi ruim, estava o ar frio, muitas estrelas, um quarto de lua, uma vontade de encolher-se enquanto esperava pelo pálido do céu quando amanhece.

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Eu não tenho alma para vender

Ela sugere que o que você mais quer neste momento é encontrar a força e a força de vontade para vê-la e assim, através disso, conseguir o que deseja. É importante que venha de um lugar de amor e tolerância, de não agressão. Coloque seus medos para descansar! Me ajude, eu não tenho alma para vender.

‘Eu quero sentir você por dentro / ajuda-me no que me faz perfeita / e em toda a minha existência estive falha…’   e é essencial para entender como seu pensamento funciona, a gente se desdobra, se co-apresenta melhor. E há de se ter paciência com os desvios do pensamento ético, há de se ter paciência com os copos que estão pela metade, ou de ar ou de cachaça. É o devir, vamos criar outras subjetividades, gritam as moças.

Que o devir funciona sempre a dois, para dar conta de algumas possibilidades. Aquilo que impede os corpos de se moverem deveria ser relativizado, a força dos habitantes dessa cidade será maior. Um dia nos conduziremos pelas intensidades e faremos novas alianças.

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Gail Albert Halaban, From series Out My Window, 2007

E dizem que naquela época o nosso universo era um mar vazio

Há um jardim peculiar de flores brancas perto do lado oeste da cidade, rezava a lenda que lá as flores se transmutaram de granadas. Conforto, beleza. Eu levei um fio de cabelo de sua cauda e quis colocá-lo cuidadosamente no chão, bem perto das pedrinhas. Depois, há de surgir água na minha sede. Eu sei que também foi bom para a satisfação pessoal visto o tão profundo e azul líquido que endurecerá a pele – desejo. Eu e você, nós estamos sozinhos e fugindo dos gigantes. Você, certamente mais do que eu, sabe que pelo bem estar ‘das pessoas’ quais pessoas deveriam ser.

Se costuma prezar em períodos secos, além disso, mais distantes estavam os horrores que fizeram com que do fogo sugerisse meu frio. O seu segredo pode estar exposto.

Dia após dia, tomo café com açúcar na cozinha encarando a respiração, enquanto ninguém quer saber sobre eles e para onde eles apontam. Para lá onde vou, ainda que me detenha sozinha, sabem sobre um tolo em uma colina. Uma pedra preciosa ao sol. E seus olhos vêem um mundo, um mundo oculto que tem milhares de vozes. 

Sussurre a verdade e rapidamente ninguém mais irá ouvi-lo.

 

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  Fred Stein, Swing, Paris, 1934

Com a pele

Está se fechando demais, siga até eu ver onde você começa a se esforçar em tempos tão apertados. Quarenta horas para sair e verá quando os copos quebrarem no chão. Então vai ser tempo para crescer e eu vou tocar seu coração.  E siga até eu ver onde você começa a arder.‘Debaixo de montanhas cobertas de neve vou partir seu coração eu vou estar sob sua pele, vou partir seu coração’. E siga até eu ver onde você começa a quebrar a cara de todos eles. E o muro desmorona. Um momento íntimo de auto-reflexão e remorso. Me apequeno se questiono as coisas muito, e às vezes isso me leva a muito pouco, bem longe do possível. Auto-sabotagem mesmo diante da oportunidade de felicidade diante dos próprios olhos. Às vezes é mais fácil deixar o ego dominar e às vezes você fica preso em um momento que lhe dá alguma clareza. Um desses momentos: uma fração de segundo de atração que se transforma na percepção de que o que já tem ou teve é muito mais real e significativo do que o que está acontecendo lá, naquele momento. As relações são como tudo na vida que insistem só porque você está profundamente apaixonado por uma ideia, não o impede de ser cegado momentaneamente, fatalmente. Está tentando reconhecer esse traço e lutar contra esse instinto. Não há tal coisa como a perfeição, mas todos nós podemos tentar ser pessoas melhores, não podemos? Disse-lhe que nunca voltará para casa e se essa vontade se transformar em uma onda, deixará você sozinha. E a sua vida tomou um rumo estranho, desnorteando você no meio da noite e a noite se transformou em dia, e sua menina disse que te amava.

 

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Kris Knight

Estrada vazia

Tento não ficar na zona de conforto, correr por fora, porque no final das contas, há crescimento nas derrotas. I’ve been waiting too long… dessa forma você poderia trabalhar com as informações que tem à mão: tempo, tempo, tempo, palavras. É uma coisa estranha de se dizer isso em voz alta… você pode trabalhar com as experiências que você tem com seu próprio corpo, suas cicatrizes, a bem dizer. Se incline para cima e mantenha-se. Se não é luta o que está vivendo, então realmente não está a viver. Dia de domingo é dia de serviço, botas de couro e ser o primeiro a chegar. Por ser tão fechado, Noel não podia saber que estava sendo tratado por Basco, pois a ideia de ter alguém invadindo sua intimidade o assusta completamente. Mas nessa noite enluarada fica selvagem, pois tem que tocar o avião pelo lado de fora e colocar os dois pés do lado de dentro ao mesmo tempo. É a forma como lida com a vida, com rituais e medos. Evitando esbarrar em solidões por aí. Pelo túnel se perde nas luzes. Em uma estrada vazia o vento fresco fresco me faz sentir tão bem que sei que eu estou indo rápido demais (eu estou indo rápido demais). O dourado e o vermelho combinam muito bem, muito bem, embora perceba que já não consiga se mover. Sim, realmente assustador.

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David de las Heras

Rosaura

Não se preocupe – você vai ser capaz de se defender; com ouvidos razoáveis ​​tudo se ajeitará.

Ela passeava como uma deusa grega, cheirando brilho, sendo razão. Felizmente, estamos vivendo em Morada uma situação particular, com diferenças bem sensíveis. Embrionárias. Se você não julgar as coisas em termos de preto e branco talvez aprecie a enorme quantidade de força de vida que está disponível por aí, nos cantos. Subia lentamente a ladeira para a ocasião festiva, mais forte, aquele ser tão penetrante como os olhos claros, cinzas, perfuram almas.

Rosaura muitas vezes servia como um modelo a seguir porque o seu otimismo e expansividade eram muito atraentes. Como condutas de força energia, certezas diárias. Um pouco de calor, força na pele, dignidade no agir. Um pouco mais de tempo, um pouco mais de tempo. Desejando a lerdeza do passado, em sua pouca inocência, pois agora sabia que ter futuro custa muito dinheiro… A capacidade de criar doçura dentro de casa, incorporando os pontos fortes do passado para o presente, eram luta de todo dia. ‘Hoje caminho com realeza, com realidade, com força. E não quero dizer nada que possa agitar as emoções de alguém, guardando o melhor que o mundo pode nos oferecer.’ Tinha memórias… precisou coragem para ser uma metáfora de cortesã, uma meia mulher, muito parecido com uma gueixa quis ser uma vez. Tanto que foi capaz de criar sua própria fortuna ao aceitar moedas para algumas conversas e carinhos. Escondidos, secretos, mas ainda assim, vez ou outra carinhos.

Agora seguia ali, a sua jornada. Uma grande catalisadora de vidas.

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Experiências de fé

É como tocar a lua com os dedos dos pés. Se emocionava quando lembravam dela. Era como se fosse um pouco menos invisível, tão acostumada estava a ser ignorada. Não sabia como era se sentir querida.

Quer dizer, até sabia, mas muito pouco.

Dita. Falada. Pronunciada. Acostumara-se a sobrar, a não pertencer.

Agora queria uma família, uma família construída. Uma família sua. Daquele seu jeito. Pensou em aprender a falar sozinha, mais vezes, quantas conseguisse, pra aprender a ter voz. Aí não importariam os outros, as outras vozes. Ele disse: são apenas rótulos. Ela pensou, rótulos pesam demais, não são ‘apenas’.

Ela desejava que cuidassem dela porque sempre fora boa. Boa e quieta. Sempre tivera juízo. Era uma plenitude acreditar que alguém lhe recompensaria por ser tão certa. Ela perdera essa crença fazia tempo. Estava inevitavelmente sozinha desde então. Mas agora, agora, conseguia construir muitas pessoas dentro de si. E conseguira abrir seu coração às pessoas que pareciam que tinham algodão por dentro. Profundas e leves. A porta de cima ficaria sempre destrancada. Escancarada, melhor.

Estava um bocadinho séria, agora. E cheia de amores.

 

 

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Foto por Flávio de Aquino Carvalho

Oi. Sou eu.

Ouvi ao longe, e aí a voz disse novamente… oi. Uma coisa se acendeu em mim, para mim, justo por isso – sussurro de quem sabe que é esperado. Demorará um bom tempo até que se acostume com a luz muito mais clara e mais abrangente do que a que pode ser adquirida em outras lojas. Até que a gente esqueça o som de determinadas vozes interiores… É impressionante como o filme (remake) ainda consegue surpreender. Já ouvira aquilo em outras circunstâncias – sempre quis falar. Esse entendimento começa com a própria palavra: coisas que mesmo esbarrando em tudo não deixam de ser notáveis. Peguei a luminária, a lâmpada sobressalente, cartões, panfletos e saí. Não deixa de ser triste o lamento da mercantilização da sabedoria. Uma xícara. (Como também não é recomendada que a nossa realidade seja construída em algo que tentamos subjugar). Nosso lado mais distinto impede que se faça graça do óbvio. Num momento isso me encantou, porque suas asas têm brilho. É para encerrar essa conversa, enquanto os danos não são tão grandes assim, manda a etiqueta. Ser o que se deseja, a partir de uma leitura casual, fundamental para manter as emoções equilibradas, e apreciar com gosto a euforia de estar no todo que esse encontro proporciona. As noites prometem, sorrio, enquanto sinto que as palavras não têm vida própria. Só à noite.

 

 

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Sábado

Tudo molhado, encharcado, um pedaço da torneira nas mãos, encanador chega, constata entupimento, misturador avariado, torneira nova, descompressor e o diálogo, adoro crianças, sou avô de cinco, filho com mel é o que é neto, separei fazem dezenove anos, no início sofri muito, mas hoje vejo que é melhor ser sozinho. me olhou fundo, respirou e disse, neto é que nem filho com mel. mil vezes. vou ter que buscar o ar comprimido pra desentupir o tanque, 250 reais de mão de obra mais as peças. pago chorando. alivia que a torneira não vai pingar mais, que o tanque tem uma torneira nova e que não irá pingar mais. esperando ele voltar pra terminar o serviço, vou terminar a faxina.

 

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Muito pouco osso

Cresceram de forma inesperada e pouco natural, talvez tenham tomado muita água. Não se espera que a loucura tenha sanidade e deseja que a vitória não seja da culpa. É preciso vida e lá estavam elas, potentes, revigoradas, folhas novas e pequenas flores brancas.

Fez suas anotações e esperava que ele também tenha feito as suas. Recuperar os gestos numa suave coreografia sem música. Só espaço e carinho. Isso tudo deixa dúvida sobre sua consciência. Mas por hora, a umidade adquirida era por demais importante.

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Albarran Cabrera, Japan, 2013

Deixe que pouse

Aberta e natural, num espaço que não tem problemas, sem subdivisões, expressando suas impressões a respeito de qualquer assunto que a toque. Importante é equilibrar suas forças e suas escolhas… recordar o que vale realmente a pena desejar. Uma imagem, um som. [Não ceder à exaustão] de escolher projetos – o convívio consigo mesma nem sempre é pacífico. Não chega a grandes conclusões. Segue devagar pelas cores, formas, contornos, conceitos. Isso deveria ser o suficiente para ficar envolvida com o querer ou não querer alguma coisa. Como um subproduto da esperança, a busca corre  num constante ir e vir, tentando controlar as circunstâncias da vida.  Contemplar a impermanência proporcionando uma maior aproximação das coisas e não ter um movimento tão amplamente largo em direção à tristeza ainda é um desafio, sabia disso.

A vinda de mais um impulso contrário se faz inevitável. Você é você e você é aquilo que você pensa que é. E também você é o que os outros pensam que você é. Dualismo imaginário em última instância, tem essa sensibilidade. Sequer é real. Passeamos, olhamos tudo, queremos e desejamos cultivando a apreciação numa perspectiva de auto-aceitação. E a aceitação auto-centrada se tornara um hábito muito forte e a querência não transfere suas virtudes às ações.

E todo dia dizem que confunde conceitos numa boa fé mobilizada desalimentando monstros distantes daqueles que não desejam construir nada.

E o pouso do pensamento há de ser leve.

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