Breath

Não, nenhuma amarra, ele é admirável, o melhor entre nós… porque tudo é violento e luminoso aqui. Vieram os dois irmãos, sem querer complicações, querendo cruzar esses universos e tentar um equilíbrio mesmo que ilusório. Preciso sentir o ar, um deles disse, antes de sair. Não sei o que dá mais medo, se do que é recorrente ou do que é um absurdo. Acidentes são os pilares da evolução, talvez o amor seja algo que tenhamos inventado, mas é tão poderoso, observável, quase palpável, e ainda combina com café. A possibilidade remota de rever, assusta, comove.

Deveríamos acreditar nisso, vocês nos deixaram aqui pra morrer asfixiados, respirando não mais que dois minutos, porque assim é preciso, para que tu vivas para sempre. Estado de alma em alerta, em vazio, em espera.Queria um trato no corpo, uma alegria no ar, uma leveza nas unhas, e você me vem com doce?

No fundo, nos visíveis risíveis do cotidiano, no ínfimo absurdo, um dia a luz, um dia a compreensão.

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John Batho, From series Swimmers, 1990

 

Não queria perder o meu tempo sonhando

Não era assim na nossa época. Volte pra cama, amor. Na velhice se deve arder e delirar até o fim do dia. Temos que encarar a transcendência, vamos partir. Achava que estava preparada pra isso, mas a realidade é diferente. Achava que era muito pura. O peito ia e vinha, era altura aquela. Vontade de nascer e amar. Rasgar, com a coxa aberta e por fora a lisura. Queria escorregar. Dormi algumas vezes, você viu, preciso sentir o ar, vamos sair um pouco. Essa coisa perfeita, inteira. Tu não vê? Ando tentando fazê-las muito bonitas, muito bonitas. A gosma clara, ácida, asca, oco da Hilda. Quero que se sinta bem. Não sei o que me dá mais medo… Já tentamos isso mais de mil vezes, e só precisa funcionar uma. Cada coerência é uma tentativa de mostrar a própria lucidez.

Eu sei que você vive rondando a casa, sei bem, já o vi por entre os arbustos lá da frente. Há quanto tempo estamos aqui, já não sei. Já não sei. À tardinha daquele dia comeram peixes. Aqui sempre chove, e a busca do afeto é sempre possível.

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Nan Goldin, Empty Beds, Lexington, Massachusetts, 1979

É um olhar de quem está tomando medidas.

Chegamos tarde por certo, com uma euforia exausta. É impossível não carregar as regras consigo na memória, diminuir o açúcar e ter prudência com as gorduras. O apetite, quando se trata, não é nada como nós esperamos, não é nada a saúde prometida. Mesmo que não venha mais ninguém, até melhor, as tragédias, esses turistas infelizes que vagam de alma em alma deixando para trás uma vaporosa libido, já trazem alguma satisfação. Essa gente faminta e desesperada deve ser mantida à distância. Não as olhe e elas estarão invisíveis. Seguia por esse caminho tentando decifrar o que significava aquele sorriso feliz e realizado, aquele arranha-céu de belezura. Só boas lembranças, impressões e tristeza. Hilário e humano. O banho de agitação, ruminação e julgamento que você se afunda em uma caminhada despretensiosa numa primavera-manhã  – quando ninguém sabe exatamente o que vai acontecer a seguir, você toma um gole hoje, onde o espírito encontra o osso. O masculino está fraco, carcomido, talvez ultrapassado. Em um estilo parecido com os lenhadores do norte do Canadá, com uma flutuabilidade de alguma forma ligado à terra, ao cotidiano, às perrengueiras naturais, estaria muito melhor do que no martírio individual que é bastante nojento. É a graça dela, é a graça dela.

 

Eu te pergunto pela paz que falta.

 

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Yang Cao

 

 

Fragmentos da janela

Todos os dias as pessoas ao seu redor fazem coisas boas. Todos os dias pessoas estão dispostas a expor fraquezas e vulnerabilidades (funciona sem adornos).

O carro avança o sinal, molha a todos. Teste de paciência, de resistência. Esperando o ônibus, os pés molhados, umidade grudenta incomoda. Aquela narrativa linear que sonhara, desejara, intuíra à noite desapareceu na mesma. Assentamentos e despertares uma caminhada ininterrupta, mas que oferece variedade sonora em troca.

O ônibus sacoleja, ela agradece ter fones. Enquanto tiver olhares, linhas divisórias, sub-sumindo os silêncios, transformando a composição aleatória e confusa em uma continuidade… enquanto… não consegue completar a frase.

A descontinuidade do estudo no que se refere ao tempo, pronto, já outro ponto de vista. Se não fossem eles, seriam outros. Ali, o nosso interesse na vida, transforma e nos faz olhar para a frente. Paisagens da janela. Para amanhã: dar prazer a outras pessoas. Uma curva e o rapaz do lado não se move, sem pressa. Sem pressa. Quando alguém se torna absorvido em si mesmo, em seus problemas pessoais, ou nos pequenos detalhes da vida diária, ele está perdendo seus laços com a vida. O outro, o insondável. Nunca saberemos.

Um avião ia cair, risos, alívio de quem viveu pra ver que a previsão era mentira. E se não tivessem trocado os números? Nunca saberemos. Água, areia, o que fazer agora que se está só? Eu tinha em minha mente que eu só queria ser uma artista. E é. A mesma abordagem ao silêncio, vida bruta. Vida sóbria.

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Quando isso acontecer

Apressando-se / atrasando-se são formas igualmente fortes de tentar defender-se do presente. Finalmente outro mês vem chegando – porque o medo das palavras vazias apavora uma imagem “zen”, razoável e mentalmente equilibrada que só o café trás. E se a vida se tornasse subitamente algo bacana no final das contas? – era assim a Matilde. Sempre otimista. Ela é mais poderosa do que a força agressiva, talvez em uma forma mais sofisticada. A gente duvida de que dizendo sim as coisas se resolvam. É essencial tomar atitudes práticas, ainda que elas se revelem pouco afetivas ou até mesmo um tanto quanto impiedosas. Nós ali, a tomar antídotos com biscoitos de coco. Chuva inundando casas, molhando colchões.

Ela é um único personagem que se esbalda a jogar tanta luz no drama que a gente tem como máxima da vida. (Confundir as coisas de substância com o seu simulacro). O papo é solto, o frio acontece na espinha, a cada baque. Penso em escapar dali, ir embora, descer o elevador, devagar, lance por lance, para pensar. Vou de escadas, decido, muito antes da minha saída. São mais felizes quando as coisas boas são esperadas para acontecer e não quando estão acontecendo. O ritmo é um dos mais poderosos dos prazeres e espera que continue assim. Quando isso acontecer, ele crescerá mais doce. Ficamos ali, a nos olhar, com as cartas na nossa frente, tentando materializar o tão sonhado ritmo doce. Como a busca ansiosa por prazeres nos faz sair correndo na frente para encontrá-los, tanto, mas tanto… que não podemos abrandar nossa respiração o suficiente para apreciá-los quando eles vêm.

Estamos, portanto, uma civilização que sofre de decepção crônica e recorrente – um enxame formidável de crianças mimadas quebrando seus brinquedos, perdendo seus amores, ficando de mau. Dói. Há de fato uma coisa como “tempo” – a arte de dominar o ritmo – mas o tempo está escorrendo … Sinto o eterno presente em meus braços que mal consigo movê-los. Mas Matilde reverbera – pois é o segredo do bom tempo, e eu só vejo degraus. Arte, só por amor.

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Sonia Handelman Meyer, Bus Stop

 

Um conhaque e uma cachaça

Agora é deixar de molho, posso entrar.

O som da torneira pingando, pardal longe, o perfume da casa e o silêncio do rádio. Coragem e os pés formigando presos no encosto de caixote. Por onde começar? Parcela de alvos, músculo e parede. Decide a parede, pedra maciça, olhar macio. Água fervendo no fogão, se atira no sofá e se permite uns minutos de letargia. Um gole de uma bebida forte agora cairia bem, levanta rapidamente, desliga o fogão (não haveria mais necessidade de ferver água) e abre o armário. Lá tinha um conhaque e uma cachaça. Escolhe pelo primeiro, serve-se dois dedos e volta para o sofá. Era o momento que se deixaria sonhar, desejar. Acho que vou escolher um bom vinil pra escutar. Ouvir um dos seus discos combinaria com a ocasião que ela mesma criou como presente para si. Billie Lady in Satin seria dramático demais. Tonny Bennet! Perfeito. O disco está novo, a melodia apaixonada a faz sorrir, e só então molha os lábios na bebida. Outro gole, dessa vez maior, desce queimando pela garganta, e lhe traz imediatamente um estado delicioso de relaxamento do corpo. Aquela história de vitória pessoal lhe trouxera pensamentos filosóficos sobre a vida e a morte. Somos todos acidente. Desabotoa o sutiã deixando seus peitos soltos, livrando-se do incômodo do fecho nas suas costas. Faz aquela manobra de tirá-lo pela manga. Pequenas gargalhadas. Agora sim, o segundo gole.

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Fanny Viguier

 

Ao conversar com alguém próximo, revele um segredo

Estava achando muito difícil que ele viesse esta noite – quer que seja bastante passageiro, quer tivesse mantido tudo separado. Lá fora quase noite e esse frio que não passa. Brincando na intimidade até que algumas lembranças não sejam fonte de vergonha. O bom era o dito com alguma voracidade. O que se tem a fazer era se privar de algo, sacrificar, provar a deus que você entende sua santidade. A ti uma parte desse futuro é construída e a outra é obra do acaso. O lusco fusco esteve único. A poeira a ser lamacenta estava a depender do que mais falta – água, nem que em lágrimas. Era o que ela precisava escutar no momento “abrir(-se)”!  Parcialmente a nossa própria vida  não dizia nada, era nada demais pra ninguém. Tenta aquietar a ignorância com o silêncio,  sentir as suas falhas decapitarem sua língua. Diante de semelhante estrondo pensa que de qualquer modo “é preciso olhar com muito cuidado”. O ar recuando do seu peito porque não se sentia seguro nos pulmões (precisava tossir um pouco). Às vezes tudo que as pessoas querem ser é ‘humanas’.

Precisava limpar a geladeira. Urgentemente.

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Jose Baso

Faz um pé descalçar o outro

Cada um a seu modo indo a lugar nenhum… Para falar do que carregávamos n’alma, para proclamar nossa angústia, ele pedia que as oposições ficassem nítidas entre idéias e atitudes. Diga! Mesmo que sem nenhum valor jurídico, fale! Tinha sucumbido ao cansaço das palavras sem efeito, sem função, sem retorno. Cansada de pensar no ‘antes’.  Esses pensamentos nunca irão tomar forma de natureza pessoal para ele, sentia no ar. Sob tortura quase todo mundo se confessa culpado para que se acabe logo com isso. Mas sem tortura quase todo mundo inventa, esquece. Vaga. (Lembra do amor de Clarice por João). Fala que o ilógico é necessário aos homens de boa vontade e que do ilógico nasce muita coisa boa. A oposição tem uma natureza de conflito, justo. Tanta disponibilidade de meios e a facilidade dos fins esbarra no mundo loucamente acelerado, sem nos dar permissão para ficar quietos. É o seu próprio fim, o tempo sujeito à nossa própria montanha russa afetiva. Não se falava sobre tudo. Corriam das palavras entediantes e espinhosas, e às vezes até corriam da troca de olhares, o que acabavam por se arrepender depois. Bem depois. Mais tarde. Com pés descalços caminhava mais vacilante que era. Mas sempre preferia assim. Naqueles dias não conseguia dizer nada.

 

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Fan Ho

 

 

 

Experiências de fé

É como tocar a lua com os dedos dos pés. Se emocionava quando lembravam dela. Era como se fosse um pouco menos invisível, tão acostumada estava a ser ignorada. Não sabia como era se sentir querida.

Quer dizer, até sabia, mas muito pouco.

Dita. Falada. Pronunciada. Acostumara-se a sobrar, a não pertencer.

Agora queria uma família, uma família construída. Uma família sua. Daquele seu jeito. Pensou em aprender a falar sozinha, mais vezes, quantas conseguisse, pra aprender a ter voz. Aí não importariam os outros, as outras vozes. Ele disse: são apenas rótulos. Ela pensou, rótulos pesam demais, não são ‘apenas’.

Ela desejava que cuidassem dela porque sempre fora boa. Boa e quieta. Sempre tivera juízo. Era uma plenitude acreditar que alguém lhe recompensaria por ser tão certa. Ela perdera essa crença fazia tempo. Estava inevitavelmente sozinha desde então. Mas agora, agora, conseguia construir muitas pessoas dentro de si. E conseguira abrir seu coração às pessoas que pareciam que tinham algodão por dentro. Profundas e leves. A porta de cima ficaria sempre destrancada. Escancarada, melhor.

Estava um bocadinho séria, agora. E cheia de amores.

 

 

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Foto por Flávio de Aquino Carvalho

Uma braçada de distância

Ideiais novos, com lampejos de inspiração. Talvez estejamos esperando um equilíbrio, mais à esquerda, ou os dois lados ao mesmo tempo, ou reduziremos a carga pela metade, assim, sobre cada ombro (como sentido e som). Tinha parado de sorrir por alguns meses. Sentia-se como uma nuvem por onde o sol passa conceitualmente em direção ao nada. Impulsionado por uma dedicação àquela certeza que só a esperança dá. Um espaço de atuação aberto, disponível, não-burguês. Sentia-se assim. Disponível. Não exatamente disponível para alguém, mas à espera de si mesma. Desejava ser catadora de cereja. Com o tempo aprendeu a tocar-se, recolhida, sossegada. Nada acontece. Em estado de antecipação suspenso. Já já volto sossegada, cheia de libertação da ociosidade forçada. Embora ela nos ofereça rotas de fuga, esse estado de antecipação suspenso é pura inquietação. O desejo de um desejo, um trem de humores. É tudo sobre detalhes e abraços. É quando se trata de ouvir hábitos.

 

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Rotina

Tudo parecia diferente, afinal. Coração pequeno, cabeça miúda pra pensar, braço dolorido. Estava ali pra fazer também perguntas tolas.

(Há tolice no amor?).

A gente não tem juízo para coisas de antigamente. Às vezes mais enfezada nos modos, enfezada nos sustos todos da vida. Que fosse sonho para se esperar e para sentir, uma coisa tão pouca de se querer. Tão pouco de se esperar. Queria ter grandes sortes. Havia de enfurecer. Pensara que havia algo dentro de si que a esperava, para quando sonhasse. E ela respondeu: que sejam por coisa nenhuma até que sentires coisa nenhuma. Que sossegasse. Mas o sossego durava coisa nenhuma de tempo.

Perguntaram-lhe: tens pressa? Ela disse sim, que era um jeito de dizer que tinha medo.

A secura de tudo. De todas as águas.

 

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Jacques Henri Lartigue

Causas perdidas

Tempo de se afastar. Dar espaço, recuar. Ficar atrás, deixar pra trás. Certa vez, numa sala onde ele repousava, educadamente me interrompeu e pediu que falasse com mais clareza sobre os pensamentos que poderiam salvar algumas poucas coisas boas.

Entregue-os, disse-me.

 

Por estar sempre na tangente sufocante entre os dois mundos, o medo não era necessariamente linear. (O erro está justamente no objeto) sua coragem é má, o que vem a ser, no final das contas, se pensar bem, uma forma de covardia. Esboçou uma tentativa mal e porca de autocrítica. Já lida como um evento inconcluso hoje, ressente-se. Caminha trêmula, decidida a retomar relações, ser resiliente (sic) é vital. É preciso traçar uma linha entre o que se pode pensar e o que se pode fazer. O que deveria estar morto, descartado, totalmente desacreditado, está voltando de forma violenta. Deseja não ter estado tão comprometida com a pressa da atualidade. Quero correr, correr muito para um lugar calmo. Cair pra dentro de mim e esquecer o valor dos segundos ganhos ou perdidos (uma necessidade).

 

Torço para um luto abreviado.

 

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Absorta

Comemora o tempo frio tão pouco que o efeito é quase espiritual. Isolados marfins, pensa nos dentes de leite, inevitável. O benefício que lhe fora concedido tem valor, você sabe que este é um momento para ficar no hall de entrada, fazendo uso dos poderes intuitivos, de maneira uniforme e, se for possível, com brilho. Sente-se frágil, frágil e criativa. (Curiosa sua propensão humana básica para o pensamento mágico.) À medida que fazia a transição para a… ao invés de ler os sinais que os pressentimentos insistiam, prefere a sensação do longo inverno. Esteve esse tempo dedicada a recuperar seus ouvidos, agora mais pesados e superiores em todos os sentidos. Se prepara para produzir algo tão comparativamente gritante como a abertura o tão abstrata que conseguisse. Um infinito universo que chega forte, apoiando as mãos para puxar, mudando adereços para criar novos estados de espírito, avançando furtivamente para a frente de outras prioridades, quase despercebido. Mas pressentiu os seus contornos sombrios cada vez mais definidos depois com uma passagem daquela música de tirar o fôlego. Amorfo pensamento, desejo de transcendência, corda-condutora, sublimidade.

 

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A qualidade de cada instante da nossa vida

Assim foi como tudo ficou tratado, ela se sentindo uma pessoa melhor, respirando melhor.

É claro que era um desabafo. Um mundo onde todos teriam uma chance razoável de felicidade, uma chance razoável. Razoável… repetia sem saber porquê. Talvez para que se tornasse realidade. A incrível limitação das palavras. Nas camadas mais sutis, o estado já desconfortável de infelicidade é um estigma que oscila entre a humilhação e o status.

Ele seguia o assunto com tédio, meio profissional. Dizia da inutilidade de pensamentos. Pelo contrário! Eu só acreditava em recordar o passado, imaginando o futuro, nunca no presente. Algumas pessoas dizem que a felicidade é agora, é a qualidade do frescor do momento presente. Devia-se misturar todos, todos os vislumbres de alguma verdade. A solidariedade dos corpos permanece. Não! Não é verdade que o coração se gasta (mas a gente cria essa ilusão). Coincidindo momentos muito específicos, sentara à mesa com aqueles novamente. Dois milhões de minutos parecem ter passado então.

Um tempo muito longo que todo mundo parecia ter dentro (entre as orelhas) e continuaram a não saber o que fazer com ele. Talvez depois de duas vezes esse tempo tenham encontrado o caminho para as montanhas, o que melhorava a sensação, mesmo que infimamente. Ruídos que representam sentimentos, pensamentos, talvez experiência. Talvez algumas verdades.

 

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Foto by Camil Tulcan

 

 

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A intuição não é linguagem.

Mas, quem sabe, se igualmente se possuir essa força misteriosa não seria apenas uma peça de artesanato consumado, uma feitura, uma manufatura…  isto não é algo que você pode voltar atrás e ter um olhar distanciado, sabe? Um pouco de inteligência, generosidade substancial e um entusiasmo palpável – necessidade. Misteriosa ela, que se mantêm sobre a alma oculta, que anda pra lá e pra cá de pés no chão, que distingue comunicações importantes a partir dos relatórios casuais do olhar.

Segue por aí, impune como quem sabe das coisas, com muito mais intensidade no ver a si mesma, a estabelecer novas prioridades. O que se está vivendo em sua vida (a vida de cada um é diferente) é,  por vezes, prós e contras de ambas (vidas muitas). É possível, só o que consigo pensar ao vê-la. Uma teoria elegante essa das maravilhas e das falhas do pensamento!

As vidas dentro da vida da gente.

Quais são as suas prioridades culturais? Um longo e árduo relacionamento. É inútil a insônia por exemplo. Se for pra dirigir, falar e entender o idioma – e o que está acontecendo na mente no momento, ainda assim é preciso. Se deixar muito pouco consciente disso. Mas em nenhum outro lugar essa relação ganha vida (mais viva e encantadora). Um antídoto humilhante: a promessa de plenitude interior. Sorri um sorriso largo e obediente.

 

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Para onde ela costumava ser

Não tinha mais nada a fazer. Sua arte (seu pecado) era ver tudo com beleza. Ficara ali naquele canto, imóvel, por tempo demais, chupando balas, roendo unhas. Para perder o apetite pelo que chamamos de pensar e deixar de fazer perguntas irrespondíveis –  foi-lhe dito.

Era uma forma que encontraram para lhe consertar, para lhe dar um jeito. A pessoa em quem mais tinha confiança foi justamente a mesma que arquitetou esse castigo. Para que não pensasse demais, para que não fosse demais, para que não desejasse demais. Suas idéias são apenas impasses, não interessa o quão importantes possam ser. (Não entendi…) Apenas deixe de ser um sabor amargo na boca.  Acha que está olhando para aquela página em branco por muito tempo, que pode produzir infinitos e incríveis desenhos, mesmo que fisicamente não sejam possíveis? Pode ser extremamente irritante até o ponto em que você pode querer gritar no travesseiro mais próximo (um travesseiro, por favor!).

Transformar-se na medida em que já se é. Ficamos sozinhos em tudo o que amamos.

Não abrir espaço para distrações (embora possa sonhar fora).

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Sophie Calle

 

 

 

Além disso

Primeiro – se você está no amor – isso é uma coisa boa (que é a melhor coisa que pode acontecer a qualquer um).

Para frente ou para trás, as dificuldades se multiplicam com suas escolhas. Segurou firme as chaves como fonte de segurança. É para a primeira frase, lembra. Aqueles lá dizem querer a verdade…  (refinar as verdades que eles podem dizer um ao outro). Tinham uma certa bagagem filosófica e literária. Era redutora e sedutora essa verdade deles. Quis trocar o final por outros possíveis, inverter a ordem dos capítulos, torná-la famosa, talvez morasse em Berlim. (Querer a verdade é querer a segurança). E quem estava aqui justamente para rir das probabilidades e viver nossas vidas tão bem?

Bem que quis experimentar de novo e de novo, todos os dias. Ainda assim, existem alguns fatores – certas preferências – que tornam isso mais fácil. Café salva. Pegou sua caneca com as duas mãos e ali ficou por muitos minutos. Tantos que esfriou o café. É importante fazer isso, porque ao se fazer isso deseja justiça à sua própria complexidade. Delírio – aquele ímã poderoso que distorce até mesmo suas crenças sobre o que você gosta. Já se sente perdida, de si, dos outros.

Caminha no sol, respira com dificuldade, lembra que via belezas à toa. Sente sufoco, coceira nas mãos, inchados pés. Porque é ruim o suficiente não conseguir o que se quer, mas é pior ainda ter uma ideia do que é e o que você queria o tempo todo.

Mas eu não acho que você estava me perguntando o que você sente. Não deixe ninguém fazer disso algo miúdo ou escuro para você.

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Guy Le Querrec,  1982

 

Ele adora torradas e farofa

Depois não falamos mais nada, não pensamos em mais nada, nada mais a gente quis.

Quando encontrar, guardo no bolso as histórias. Tremi, e a tremura é tão deliciosa como um encontro justo e firme de dois em um pensamento.  Internacional e acidental (mas ele é do mundo, não é daqui). Uma vontade derradeira (de nutrir laços humanos íntimos – o afeto, o desejo apaixonado e amizade) ameaça uma certa descrença (coisas de antes). Uma certeza absurda (custava a acreditar).

A relação mais rara, mais profunda. 

Nós temos muito mais bondade do que é dito. Eu gosto dele e ele gosta de mim. Nós usamos os nossos olhos mas o olhar está olhando, levianamente, aquele desenho no braço, aqueles escritos na pele. A partir do amor apaixonado eles fazem a doçura da vida. Os nossos poderes intelectuais e os princípios ativos aumentam com o nosso carinho. Dar uma pausa rápida em tudo o que era.

Eu sou tudo dormente, eu juro. Ele foi-se embora. Vi-o por um minuto, de relance.

No espaço pequeno, de manhã, quis café, quis cappuccino, quis torradas, quis banho. Quis sonho. Quis. 

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Helen Levitt

 

Com o sol queimando em pedra e carne

Desejando sobrecarregar o belo, se refazia a cada sorriso imperfeito. De canto. Amarelo. Era de uma maneira que não seria capaz de capturar esse sentimento de reverência, esse sentimento de flor. Terrestre por demais. Diriam nas condições normais da vida que tinha que fazer alguma coisa, ir para o próximo passo, qualquer um que fosse –  e que o próprio era uma fonte de amor espiritual.

Sentira como se o ruído, assim como o silêncio, barrassem toda via de acesso ao outro ou pior, a si. Um convite. Um brinde. Uma taça. Saúde às profundezas. Houve sempre um esforço pouco nobre de desacreditar-se do outro, já que o bom senso poderia parecer teimosia. (Caretas de êxtase  a profundeza, ali, do seu canto). Se me perguntassem diria que nunca nos encontramos.

Alguma vez, com a certeza do amor revelado e a promessa de felicidade, enigmático e poderoso graças à sua fraqueza, existira o desejo de nada entender. Como quando se caminha sobre copos de água. Estava cansado e pronto para cair de exaustão quando um amor se fez visível. E se você dormisse, e se você sonhasse?

Mas na minha mente ainda me diziam: “Depressa, depressa, depressa”. I don’t wanna to know.

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Bill Jacobson

Ou seria engolida pelo tempo

Chegou na hora exata, como um sinal, talvez até divino (talvez  exista alguém pensando em mim agora…). Organiza sua vida ao redor disso, desses pequenos sinais. Naquele momento só consegue pensar na oportunidade que a vida oferece de  fazer pedidos para o universo. Suspira. Eles se abraçaram novamente, e então desataram a falar. Era um indicador de um amplo potencial, potencial afetivo, sabe, diria ao psicanalista mais tarde.

Porque aqui eu sou o lugar, o lugar é aqui.

Porque estereótipos limitam o amor, porque os rótulos limitam o amor. É muito sensível em relação a como os outros a acolhem (ouviu dele). Com notável ambição nos olhos lia nos trechos rabiscados em pedaços de guardanapos que guardava na bolsa “se aqueles que começamos a amar soubessem como estávamos antes de conhecê-los … eles poderiam perceber o que eles fizeram de nós”. Suspira.

O que podemos é fazer uma aposta! Tolice (decadência, sintoma de esgotamento). Aqueles que preferem os seus princípios aos infortúnios dos amores, sua felicidade, sim, aqueles eram fortes. Que besteira. Se recusam (apenas) a serem felizes fora das condições que parecem ter anexado a sua felicidade. Eu te amei como pude.  Às vezes sinto-me atravessada por uma imensa ternura por pessoas ao meu redor – grito mudo. Como o grito usado nos antigos clãs para inspirar os seus membros a lutarem pela preservação. A sua apenas, talvez já bastasse.

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Fan Ho, White tent, 1960, from series Living Theater

 

 

Ou mais precisamente,

De um significado infinito (o segredo) lento e preciso, pousou como uma névoa suave descendo sobre os últimos dias (não desanime). Enrouqueceu, a respiração suspensa devido à natureza da semi-improvisação, como um fantasma que tem medo de ter morrido. Deixe suas cores gastas, seu peso. Impressionam na disputa levantando-se no ar, num pulo ágil e bonito, como se tivessem vida própria e exigissem serem ditas – as palavras. Mostrou algumas curvas e espirais na bolsa e saiu a rodopiar. E seus sonhos? (Os meus sonhos estão em silêncio). Você  nunca pensa neles? Articulação. Sempre esperei (esperarei) um sinal seu. Antes do café, antes de cuidar dos dentes, antes de trocar a roupa. Antes. Nem precisa acordar, acordar, só abrir os olhos já espero um sinal seu. Deveria estar dormindo à essa hora. Então começa a escrever, palavra por palavra. Diziam que de longe era melhor. Com os dedos na boca percebe que a raiva é uma forma de tristeza.

 

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Amor em líquidos

Com cheiro de terra úmida e fértil, não conseguia sossegar. Estou adiando o silêncio. Tentou a palavra, mas ela cortou demais, doeu demais. Ela e seus múltiplos orgasmos eram sua usina de força em um arranjo maravilhoso desse esboço de ecossistema dinâmico do corpo.  Uma invejosa habilidade de produzir espasmos partindo do ventre em direção ao peito, pulmão e coração. Era o que se podia resultar desse impulso.

Sabia que deveria olhar os poetas para que não pensasse que esse tipo de auto-cortesia era injusta. Deitada no mato sentia o corpo espetado por pequenos gravetos que conseguiam atravessar o lençol que usou como leito. Queria o amor maior, natural. Um dia quis ser isenta do clímax e se permitir o mistério. Roçava levemente as coxas nuas no tecido, prolongando a viagem de volta, ainda que não tenha estado em lugar algum. Sobre memória, perda e culpa – já intuía o que viria a seguir. (Olhe nos meus olhos e fale sacanagens).

Um sentido, um nome, um corpo, carne. As coisas ausentes não mais eram.

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Emmet Gowin, Edith, Danville, Virginia, 1972

 

 

Talvez deus fosse feio

Deixou cair a pequena moeda da sorte, aquela que carregava consigo faziam três anos já.

Era como desfazer de noite o que tricotara de dia só para tentar desfazer o feito e ter sempre recomeços. Precisava de moedas naquele tempo. Se agarrar a sentimentos, por muitas vezes, era só o que lhe restava, e à essa tarefa se dedicava de corpo e alma. Não percebera então que os pensamentos funcionavam como âncoras, pedras, pesos, cimento. Podiam paralisar, embrutecer, emburrecer as gentes. Mas um ouvido atento percebia isso e a  libertaria como se não houvesse mais urgência urgente do que aquela liberdade tola. Pois o lado de lá tem cor e endereço indefinido.

As montanhas interditadas pelo inverno, separava os lugares uns dos outros. A moeda deixou lá, sujando o chão. Fugiu. (Os livros levou consigo em um saco, apertado no peito). A liberdade não era tão alegre assim.

Viveu como que se tivesse sido autorizada a isso.

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Sophie Calle, The Nose, 2000

 

 

Oi. Sou eu.

Ouvi ao longe, e aí a voz disse novamente… oi. Uma coisa se acendeu em mim, para mim, justo por isso – sussurro de quem sabe que é esperado. Demorará um bom tempo até que se acostume com a luz muito mais clara e mais abrangente do que a que pode ser adquirida em outras lojas. Até que a gente esqueça o som de determinadas vozes interiores… É impressionante como o filme (remake) ainda consegue surpreender. Já ouvira aquilo em outras circunstâncias – sempre quis falar. Esse entendimento começa com a própria palavra: coisas que mesmo esbarrando em tudo não deixam de ser notáveis. Peguei a luminária, a lâmpada sobressalente, cartões, panfletos e saí. Não deixa de ser triste o lamento da mercantilização da sabedoria. Uma xícara. (Como também não é recomendada que a nossa realidade seja construída em algo que tentamos subjugar). Nosso lado mais distinto impede que se faça graça do óbvio. Num momento isso me encantou, porque suas asas têm brilho. É para encerrar essa conversa, enquanto os danos não são tão grandes assim, manda a etiqueta. Ser o que se deseja, a partir de uma leitura casual, fundamental para manter as emoções equilibradas, e apreciar com gosto a euforia de estar no todo que esse encontro proporciona. As noites prometem, sorrio, enquanto sinto que as palavras não têm vida própria. Só à noite.

 

 

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Lambe

À beira de uma determinada figura de mulher que desejaria ser, que raios! – ele estava certo.

A bela atenção e exploração sobre a origem de se abrir e admirar a realidade do outro, no outro, com o outro. Um gesto acidental fundamental para toda vida dar certo. Era, sempre foi, atribuída à falta, essa falha, esse vácuo. Mas ainda é um assunto delicado essa condição e sensação de estar se desagregando e se perdendo. Serve-se de chá, senta na banqueta na beira da pia, e tenta não pensar. Ou melhor, pensar sim, só que com o corpo inteiro.

Já é de madrugada e dali a poucas horas terá que acordar pra cumprir o dia. No escuro, anda no escuro. E quando for oportuno, começará devagar. Um toque feliz  naquele ponto das suas coxas a umedece. Os sentidos se esgueiram pela porta dos fundos da sua própria consciência. Um encontro afetivo. Com a devida honestidade poética, sabe que tentar desesperadamente uma coisa é muitas vezes uma forma de não a conquistá-la. Aperta os olhos. Prefere os arrepios das coxas. Lembra de molhados, de toques fortes, de vigor.

Experimenta, mesmo que de madrugada, mesmo que sozinha, mesmo que com frio, mesmo que apática, experimenta sentir seu próprio gosto.

 

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